A BIOTECNOLOGIA NA AMÉRICA LATINA - UMA
PERSPECTIVA DE DUAS MÃOS

Durante as últimas duas décadas observamos um crescimento acelerado de vários mercados latino-americanos, dos quais o Brasil, México e Argentina parecem liderar no contexto farmacêutico. 

Democracias mais fortes, inflação reduzida e maior renda transformaram o poder aquisitivo e a mentalidade capitalista da população da América Latina, fortalecendo assim o consumo. Aliado a conquistas regulatórias especificas e sistemas universais de saúde, tudo parece conspirar a favor de uma base forte para as intenções na área de biofarmacêuticos. 

As empresas nacionais, voltadas principalmente para o mercado interno, tiveram a oportunidade de crescer. Enquanto a mentalidade nacionalista tem sido amplamente criticada no exterior, a verdade é que agora, no cenário mundial atual, notamos uma comunidade internacional com grande interesse na exploração do mercado latino-americano. 

As principais questões são: como, quando e de que maneira? 
Espero que meu recente retorno ao Brasil, após 22 anos estudando e trabalhando no exterior, possa lançar uma luz sobre como os envolvidos, no âmbito nacional, enxergam os investidores internacionais – e quais são os prós e contras para aqueles interessados em explorar o mercado latino-americano de biofarmacêuticos. 

Em primeiro lugar é preciso entender o pensamento coletivo dos governos da América Latina e tentar descobrir um favorável para todas as partes envolvidas, que beneficie tanto à população quanto os investidores internacionais. Devido ao tamanho de seu mercado, mencionarei o Brasil, como exemplo, já que somos o maior da América Latina, e comentarei sobre as políticas contraditórias nacionais. 

Os biológicos e biológicos similares, como são chamados os biossimilares no Brasil, representam cerca de 2% dos medicamentos de prescrição. Entretanto, somam até 43% dos gastos públicos com medicamentos. Logicamente, portanto, a redução de preços deve ser uma das principais preocupações do governo brasileiro numa tentativa de aumentar o acesso e melhorar o desempenho do sistema de saúde, com terapias específicas e mais eficazes. 

Redução de preço dos biofarmacêuticos – Até o momento a solução mais popular tem sido a produção em massa de biossimilares na China e Índia, tentando assim, de alguma forma, recriar uma estratégia de mercado genérica muito bem sucedida – como o próprio Brasil pode testemunhar. O único problema é que os biossimilares não são similares aos genéricos, e não devem ser abordados com enfoque orientado aos genéricos. A realidade atual é que um grupo relativamente grande de profissionais da saúde no Brasil não consegue compreender completamente o jargão simples da biotecnologia, como exemplo a diferença entre genéricos e biossimilares. O que todos sabem é que os produtos biológicos tem alto custo de desenvolvimento, distribuído ao decorrer de um período duas ou três vezes mais longo que o percorrido por uma droga sintética. 

No momento, há uma consciência cada vez mais forte de como é crítico o processo produtivo biofarmacêutico e que as análises de estabilidade e segurança são no mínimo 10 vezes mais complexas. A redução de preço obtida através da estratégia de terceirização poderia chegar a até 20% a 30% mas, será que isto é o suficiente? 

A resposta é simplesmente “não”. Os preços continuam demasiadamente altos, mesmo considerando uma redução de 30%. Uma vez que há fabricantes de produtos de referência que produzem seus próprios produtos biológicos similares – o mercado continua sendo dominado e regido por grandes companhias farmacêuticas. Curiosamente essas empresas tem apoiado a maioria dos eventos educacionais sobre biofarmacêuticos no Brasil, numa tentativa de elevar o nível de conhecimento básico e aumentar as vendas.  Além disso, a terceirização continua não dando atenção a questões como dificuldades no transporte e armazenagem, que tem impacto direto sobre os preços. 

Perspectiva do mercado de trabalho – Outros problemas estão relacionados à perspectiva de mercado.  Apesar dos seus esforços direcionados à educação, as grandes empresas farmacêuticas encontram entre os médicos, farmacêuticos e profissionais da saúde, uma classe de mão de obra sem qualificação na área da biotecnologia. Deve-se esclarecer que a falta de educação ou conhecimento substancial quanto à biotecnologia não provém da falta de entusiasmo e persistência, mas resulta diretamente de um sistema de educação e pesquisa biotecnológica mal orientado. 

É lógico que adquirir uma plena compreensão da biotecnologia levaria em média de 6 a 8 anos de estudo, e experiência de trabalho, o que não pode simplesmente ser transmitido num único evento ou numa série de palestras. Assim como ocorre na maioria dos países do mundo, o grupo reduzido de pessoas com know-how simplesmente não é tão focado no desenvolvimento de medicamentos quanto no estudo de componentes celulares e doenças patológicas. 

Financiamento feudal – No Brasil, a biotecnologia é dominada pela pesquisa acadêmica, com limitações significativas ao financiamento e ao acesso a materiais (impostas principalmente pelo governo e agência reguladora). Instituições maiores de pesquisa como Butantan e FioCruz, apesar dos seus méritos, continuam sustentando uma hierarquia feudal com  acesso reduzido a novas mentes e ideias. Ou no mínimo com um caminho difícil para se chegar às posições de liderança e implementação de mudanças. 

Isto, por sua vez, cria uma mentalidade que tende a enxergar a situação de uma perspectiva de dentro para fora, o que favorece o desenvolvimento tecnológico no exterior devido às dificuldades adicionais relacionadas recursos e implementações que os pesquisadores encontram em seu próprio país. 

Trata-se, de fato, de um problema grave. A repercussão imediata é a falta de confiança interna no potencial de desenvolvimento, apesar de haver dados e exemplos que indicam o contrário, o que finalmente resulta na falta de iniciativa nacional. Na verdade, o Brasil ainda não decidiu se seguirá ou não o caminho do desenvolvimento abrangente de biológicos e/ou biossimilares, enquanto tem plena consciência que não agir rapidamente deixaria o País nas mãos dos atuais líderes de mercado. Caso o Brasil facilitasse o desenvolvimento nacional poderia superar os problemas com transporte e armazenamento, mas a questão da redução de preços continuaria sem solução, exatamente por causa das dificuldades na importação e das taxas cobradas pelo governo além das dificuldades em encontrar, treinar e trazer mão de obra qualificada de fora do país. 

Recentemente, temos observado um aumento no número de  associações de pacientes fazendo questionamentos duros como “Como determinar a segurança e eficácia das moléculas grandes como no caso dos biofarmacêuticos?” Os próprios pacientes estão encontrando lacunas no conhecimento e nas evidências com relação à segurança e eficácia, principalmente quando sofrem com alguma complicação como  a imunogenicidade. Na verdade, como Diretor de Pesquisa clínica do laboratório RDO de Pesquisa e Desenvolvimento, eu tenho encontrado grandes dificuldades testando e projetando ensaios clínicos envolvendo biofarmacêuticos. Aparentemente, outros laboratórios não buscam soluções para estas questões, que tem na comercialização de produtos biológicos inovadores e similares grandes preocupações. 

A partir de uma perspectiva (de fora para dentro), o Brasil deveria reduzir a burocracia e os impostos sobre a importação de matéria prima ou promover a criação de centros biotecnológicos nacionais para suprir as necessidades existentes além de investir pesado na educação necessária para o desenvolvimento, a produção, distribuição e prescrição de produtos biofarmacêuticos. 

Em contrapartida, investidores internacionais estão interessados na exploração do mercado brasileiro e latino-americano devem dar um salto de fé. É essencial que se decida o quanto antes se estabelecerá um negócio local, visto que aqueles que o fazem agora terão uma vantagem no futuro próximo. Espera-se também que, ao perceber o real interesse na biotecnologia da América Latina, os governos sejam obrigados a reestruturar sua legislação vigente para facilitar e aumentar iniciativas na área da biotecnologia interno e/ou externamente. A pergunta final que faço é: Quem dará o primeiro passo? 

* PhD. Roberto Araújo – Doutor pela Universidade de Columbia (EUA) é geneticista e especialista em Biologia Molecular – foco em Pesquisa Clínica Nacional e Internacional. É professor de Pós Graduação no ICTQ (www.ictq.com.br).

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